Colo de mãe

Mudei de cadeira, mudei de xícara,
joguei  fora o adoçante
e recriei meu café da manhã.
De nada adiantaram as mudanças,
tudo  tem outro gosto, tudo é fastio,
tudo  é uma esquisitice  aguda.
Estou macambúzia, gripada, mas nada dói em meu corpo.
Minha gripe é na alma, congestionada de saudade.
Ah, meu Deus! Dá-me a canequinha de lata,
o tamborete antigo e o colo de mãe
que  foram deixados  numa cozinha farta de aconchego.
Dá-me o fogão à lenha, o café de um coador de  pano
e os meus despreocupados anos de infância .
Hoje eu quero um remédio que me cure
dessa  dor inquietante de não  ser mais criança.

Inteira

Não é que eu queria
Construir um novo mundo
Eu só queria fazer parte deste
Estar na vida de alguém
E eu descobri que é a sua vida;
Eu regressei os meus sonhos
Para junto dos seus.
.
Eu estou inteira
Não estou pela metade;
Ainda vou caminhar
Na sua direção
E te abraçar;
.
Eu sei
É uma cena típica
De um romance,
Mas aqui o cenário
É de um amor real.

Monólogo do enforcado

Somos enforcados. Em Coromandel, num acesso de fúria, matamos a facadas nosso dono. Não queríamos isso. A princípio, pensamos apenas em defender-nos e assustá-lo, para que ele não nos matasse a porretadas. Mas quando o senhor viu nossa reação, ficou indignado e disse que nos mataria a pancadas, como se mata um cachorro danado.

Depois, trouxeram-nos para Araxá, amarrados e vigiados todo o tempo. Batiam-nos sempre, xingavam-nos de todo nome ruim que conheciam, e diziam que muitas vezes iríamos nos arrepender de ter nascido. Brancos, sonsos, como se nós tivéssemos escolhido semelhante modo de vida…

Houve o júri. Dizem que era estreia. Todo mundo foi assistir. O Promotor falou muito, o Advogado de Defesa quase nada. Não adiantava. Todos sabiam qual seria o resultado. Menos nós, que tínhamos alguma esperança.

Quando o juiz leu a sentença, eu senti um fogo subir na boca do meu estômago, as pernas ficaram bambas e tive vontade de chorar, mas as lágrimas não saiam.

Não queriam perder tempo, e quando terminou o júri a forca já estava pronta. Fomos para lá e a multidão nos seguiu. Alguns nos atiravam pedras, outros nos cuspiram no rosto, quiseram agarrar-me pelos cabelos, mas carapinha de preto não tem jeito de agarrar.

Houve até discurso, quando já estávamos no alto do morro. Meu irmão foi o primeiro, eu por último. No momento em que o carrasco me passou a corda no pescoço, toda dor do corpo maltratado, da boca sangrando, do olho rasgado, da fome de três dias sem comer, tudo sumiu.

A Mamãe do Céu me fez entender que naquela hora eu recebia minha carta de alforria. Era para sempre um homem livre.

No alto do morro dois corpos balançavam pendurados na forca. Uma pequena multidão assistia ao carrasco descer os negros enforcados e cortar-lhes a cabeça.

A Vila está em festas, pela inauguração do júri e da forca. Entendiam que escravo era uma coisa e não podia ser tratado como pessoa. Assim, se os pretos tiveram a coragem de matar a facadas seu próprio dono, deviam morrer como animais, para que nenhum escravo se atrevesse a tanto. Era o que a Vila entendia por justiça.

No alto de Santa Rita, tudo agora é silêncio. Todos se retiraram e a noite cobriu a forca com seu imenso véu negro. No chão de pedras e capim, as grandes manchas de sangue dos pretos ficaram como único sinal do que se passou.

A Vila adormece. Na senzala, os escravos cochichavam apavorados, os dramas que os obrigaram a presenciar. Alguns choram, outros fazem o sinal da cruz.

O vento passa entre as folhas da árvore gigantesca no alto de Santa Rita, produzindo um longo gemido, como se a própria natureza chorasse os erros dos homens.